sexta-feira, 19 de novembro de 2010

2 + 2 = 5!!!

Uma crônica sobre dois momentos distintos, mas complementarmente perfeitos.

A terça-feira começou chuvosa. Dia tipicamente paulistano? Creio que ninguém mais se lembre como são os dias tipicamente paulistanos, cada vez mais raros. Dia tipicamente britânico! Perfeito para preparar o clima para o que viria à noite.

HSBC Brasil Nações Unidas, 21hs.

Depois de deixar o carro com o manobrista, de uma entrada tranqüila e de certa complicação para comprar e pegar um drink (caríssimo!!!), percebemos que Martina Topley-Bird está fazendo o seu não anunciado show de abertura. Voz conhecida e reconhecida por conta do disco de estréia de Tricky – co-fundador e ex-membro da banda principal – ela está sozinha na palco, cercada de instrumentos (tecladeira, marimba, guitarra, samplers e programações). Pede desculpa pela ausência do parceiro de palco, substituído por sons e beats pré-grabados. Não importa! A música é de primeira e hipnotiza boa parte do público que já ocupa a pista da casa de shows. O som é elegante, bem cuidado e ideal para entreter a audiência para o que viria.



Com quase uma hora de atraso (segunda as más línguas por conta do movimento para compra de ingressos de última hora na porta da casa), as luzes se apagam e começa o que viria a ser um dos (senão o) grandes shows de 2010. Recentemente a revista inglesa Q, em resenha, comparou o show da nove turnê do Massive Attack, ao do Radiohead, em termos de qualidade na execução das canções e da produção musical.

Duas baterias, guitarra, baixo, programações e tecladeiras fazem a cama para um som “gordo”, tenso, que privilegia o grave, mas recheado de climas e beats. O telão de led no fundo do palco é uma atração à parte.

O show começa bem eletrônico, com United Snakes, música lançada como bônus na versão em vinil do último álbum, e o que se segue é uma completa desorientação sonora e visual.

Já na segunda música, Mrs. Topley-Bird está de volta, com sua voz sensual e ao mesmo tempo doce, e que viria a ser utililizada em mais duas músicas, sem contar uma participação nos teclados no bis.

Em seguida Risingson, clássica, com o vozeirão do irmão gêmeo perdido do Hélio da La Peña, Grant “Daddy G” Marshal.

Introdução perfeita para a lenda da música jamaicana, Mr. Horace Andy, e seu canto em falseto, para uma interpretação perfeita de Girl I Love You, do último álbum. Os olhos se enchem de lágrimas!
Mr. Andy ainda retornaria em Angel – com sua guitarra rasgada – e em Splitting the atom, essa já no bis.

Mais novas executadas à perfeição, sempre em versões estendidas, permitindo aos músicos criarem seus climas e brincarem dentro do tema.
Eis que entra no palco a poposuda – no bom sentido, que fique claro – Deborah Miller, para cantar com sua voz de cantora de igreja o hit Safe From Harm.



No bis, uma inédita – As your were living (Cheyenne), a já mencionada Splitting the Attom, com Horace Andy no vocal e Martina Topley-Bird nos teclados, a explosão de Unfinished Sympathy – com Deborah Miller estraçalhando nossos ouvidos – e quase 10 minutos de Atlas Air, com suas tecladeiras. Nesse ponto, o maestro Robert “3D” Del Naja está dançando freneticamente no fundo do palco, enquanto Mr. Telão tem seu momento de solo, inundando a casa de shows com suas luzes e cores, mostrando no início um mapa-mundi em 3d e uma emulação de painel de aeroporto, seguido de uma frenética apresentação de logos de empresas globais, que vão se deformando conforme a música vai chegando ao final.

Sim, existe um tom político na apresentação do Massive Attack, que é revelado ao longo do show por meio do telão, que traz estatísticas sombrias acerca do comércio de armas, desigualdade social, etc. O Brasil é afagado por algumas informações, mas não existe chapa branca, e vários dados aterradores são mostrados. Existe espaço para uma certa descontração, com a citação de frases como “haja o que hajar o Corinthians será campeão” e “meu coração só tem uma cor, é rubro-negro”, devidamente creditadas a Vicente Matheus e Fabão. Sem contar a pérola “minha bunda me deu tudo” (Carol, ???) e notícias de jornal dos últimos dias.

O bis final vem com Karmakoma, que é interrompida e reiniciada bem antes do refrão, para brincar com a platéia.
Bom, o show foi mais ou menos isso, e é importante dizer que qualquer relato ou comentário não conseguirá, nem de perto, traduzir a paulada que foi a apresentação.

Contudo, há algo que é possível se dizer, no tocante à avalanche de shows internacionais do segundo semestre, e que põe louco e falido qualquer amante do bom som: sem desmerecer os festivais – fundamentais pela quantidade de atrações juntas, mas com desvantagens claras em relação à estrutura e logística para o público – é muito bom ver que temos recebido bandas relevantes, no auge – comercial ou criativo – e que trazem suas turnês regulares, o que significa que não se restringem aos hits, e exploram de forma adequada os novos repertórios. Esse foi o caso, só para citar o que me lembro, de REM, Radiohead, Franz Ferdinand, Super Furry Animals e agora o Massive Attack.
Quanto à estrutura da casa de shows, tirando o já mencionado preço abusivo das bebidas, o HSBC Brasil Nações Unidas até que não é ruim, tem um bom tamanho e um ar condicionado que funciona, além, é claro, da excelente qualidade do som, mas peca pela pequena quantidade de bares e por ter um dos banheiros destinados à famigerada pista vip, sem contar que é plano, o que dificulta por vezes a visão, quesitos em que perde feio para o Via Funchal.

A quarta-feira, por sua vez, teve um dia bonito, ensolarado, que culminou em uma noite muito agradável, ainda mais quando se vai a um lugar como o SESC Vila Mariana, bonito e agradável, com um senão apenas para a fila do estacionamento. Não quero ser repetitivo, mas a estrutura do SESC – e não me refiro apenas ao Vila Mariana – é mesmo de primeiro mundo, isso sem falar nos preços honestos e acessíveis para os shows (o valor para Lou Reed e Gil Scott-Heron era de R$ 40,00 cada, R$ 20,00 para estudantes). A pontualidade dos shows é impressionante, assim como o conforto do teatro e a qualidade do som.

Vamos ao show.

Se na terça o show foi de uma banda consagrada, com mais de 20 anos de estrada, o do dia seguinte mostrou um artista em nascimento. E que artista!
Apesar de ter uma incrível rodagem como músico de apoio de gente do calibre de Arnaldo Antunes e Chico César, e de ser um compositor cada vez mais requisitado, Marcelo Jeneci – o artista solo – finalmente ganhou o mundo de forma oficial, fazendo o lançamento de seu CD. Quem acompanha a nova cena musical brasileira, e de São Paulo mais especificamente, sabe o quão aguardado era o disco do Jeneci, cujas músicas vêm sendo apresentadas nos palcos da cidade há quase dois anos.

E como esse cuidado em trabalhar as músicas ao vivo ao longo do tempo – também refletido no esmero da produção do disco – faz diferença na apresentação feita pelo músico e compositor.

A banda é afiadíssima, com Estevan Sinkovitz na guitarra, violões e bandolim; Régis Damasceno (Cidadão Instigado, Maquinado, e outros) no baixo; João Erbetta (Los Pirata) na guitarra e Richard Ribeiro na bateria e metalofone, esse dois substituindo, respectivamente Edgard Scandurra e Curumim, que tocam no disco.

Acompanham a banda um trio de metais e uma orquestra de câmara, regida por Arthur Verocai.

Aqui um parêntese necessário, para quem não conhece Arthur Verocai. Maestro e arrajnador, trabalhou nos arranjos de discos e/ou apresentações de gente do quilate de Jorge Ben, Erasmo Carlos, Marcos Valle, Gal Costa, Elizeth Cardoso e Ivan Lins. Em 1972, lançou um disco que, após redescoberto e sampleado por diversos artistas de hip hop gringos, é um dos LPs brasileiros mais caros no mercado de raridades. Foi também recentemente homenageado em LA, com a reprodução ao vivo e na íntegra do referido álbum, por uma banda/orquestra com grandes nomes da música brasileira e americana, show que foi gravado e virou DVD na caixa Timeless (Mochila Records).

Dito isso, basta mencionar que Verocai foi responsável pelos arranjos e regência da orquestra no disco de Jeneci. A gravação das cordas, aliás, dá outra boa história, pois foi feita ao vivo, com toda a banda, em um estúdio em São Paulo que fica em um convento e é administrado por freiras. As músicas foram gravadas em fita e depois trabalhadas pelo produtor Kassim (+2, Los Hermanos, Caetano Veloso, Vanessa da Mata, etc.).
Quem foi ao show deve estar sentindo falta da apresentação de alguém!
Esse suspense se deve ao fato de Laura Lavieri não ser apenas uma integrante da banda, mas um ponto central dentro da apresentação. O próprio Jeneci já se referiu a ela como “meu duplo”, e disse que ficou até mesmo em dúvida se assinaria o disco solo ou em nome dos dois.

Pois bem, Laura canta junto com Jeneci quase todas as canções, e nas quais não canta como vocal principal, faz belos backings e toca belos sons ao piano ou no teclado.

O show começa quente com Copo D`água e Café com leite de rosas, rocks com uma pegada setentista e metais em brasa. Jardim do Éden acalma um pouco as coisas com um balanço certeiro.

A orquestra entra no palco para dar ainda mais emoção a Quarto de dormir e Felicidade, seguidas da brejeira e belíssima Pra sonhar (a tal música que me fez chorar dias atrás).

Tulipa Ruiz, primeira convidada, aparece para interpretar –com sua voz belíssima e sua performance graciosa – junto com o anfitrião Dia a dia, lado a lado.

A primeira parte do show é encerrada com a apresentação da música Feito pra acabar, que cresce e ganha muita força com a entrada das cordas. Nota triste para o músico da orquestra que caiu do praticável quando os músico recebiam os cumprimentos e se retiravam. Após alguns segundos de tensão, o senhor surge de trás do piano para receber os merecidos aplausos.

A banda sai e Jeneci fica só ao piano para uma música que, segundo o mesmo, se resume a um refrão que não consegui ganhar uma letra e que, portanto, provavelmente ficaria assim mesmo.

Com a volta da banda, e sentado junto de Laura Lavieri ao piano, tem início Doce solidão e seu delicioso assobio, que, ao final da primeira parte da música, ganha a participação de seu autor, o Hermano Marcelo Camelo, ovacionado pela platéia. Os dois tocam mais uma música, Camelo no violão, Jeneci na sanfona.



O show se encaminha para o final com Borboleta, música com uma pegada jovem guarda e letra exaltando as delícias de ouvir um som batendo os pés e cantarolando o refrão.

Após uma breve pausa, a banda volta e Laura Lavieri tem seu momento de brilho solitário, cantando Longe, uma das mais belas do repertório, gravada também por Arnaldo Antunes em seu último disco solo, e que também foi sucesso e trilha de novela global na voz do sertanejo Leonardo.

Em seguida vem Dar-te-ei, outra com letra especialmente romântica e o derradeiro bis com o repeteco de Copo D`água.

Na saída, aglomeração para quem foi comprar o vale CD (que não estava disponível por conta de atrasos de fábrica, mas que parece ter uma arte gráfica de primeira). Vi um senhor pedindo quatro!!! Como um dos grandes segredos é ter paciência, preferi esperar o lançamento nas Saraivas, Culturas e Fnacs da vida.

Pra encerrar, resta mandar a mensagem a quem puder receber: dêem uma chance ao Marcelo Jeneci! Um artista de primeira grandeza, sofisticado e ao mesmo tempo popular. Um cara que prima pela qualidade quase artesanal de suas músicas (lapidadas como verdadeiras jóias), e que escreve (com parceiros ou sozinho) letras simples mas belas, muito longe da redundância que impera na música brasileira comercial em geral.

E foi isso! Dois grandes momentos musicais, absolutamente distintos, porém, complementares, que reforçam minha certeza de que, citando Otto: feliz é aquele pode escolher as músicas que ouve.

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